Costuma-se dizer que a sociologia é a confirmação do óbvio. O mesmo se pode dizer dos Censos e em particular do Censo de 2011 divulgado no final do ano. Mas tal como a sociologia, os Censos são necessários porque nos dão uma visão mais rigorosa da realidade e, sobretudo, da sua evolução – mesmo admitindo a margem de erro que inevitavelmente contêm e as diferentes interpretações a que os números sempre se prestam.
Um dos elementos que eu gostaria de comentar surge no
final do Censo 2011. Trata-se das respostas, facultativas, sobre a
pertença religiosa. Num total de quase nove milhões de pessoas acima dos
15 anos, 7.281.887 milhões afirmam-se católicas, 347.756 de outras
religiões e 615.332 sem religião.
Relativamente a 2001, há algumas
mudanças significativas, a maior das quais é o aumento quase para o
dobro das pessoas que se afirmam “sem religião” – em 2001 eram 342.987.
Há também, relativamente a 2001, um aumento de 82.508 pessoas de “outras
religiões”. A religião católica é única que perde, embora de forma
muito pouco significativa: 72.661 a menos em comparação com 2001. Sem
surpresas, as religiões que mais cresceram em Portugal são as cristãs
não-católicas – de 188.489 em 2001 para 295.459 em 2011. Com totais
muito mais reduzidos, aumentaram significativamente os muçulmanos e o
grupo designado por “não-cristãos”, entre os quais estarão os hindus,
budistas, bahai e outros. Quanto aos judeus, apesar de um aumento nas
respostas quase para o dobro, mantém-se como uma das religiões de menor
dimensão numérica em Portugal.
Como interpretar estes números? Em
primeiro lugar, cresce a indiferença religiosa. O número dos que se
afirmam “sem religião” é o que mais aumentou, confirmando uma tendência
que se afirma desde 1960 à semelhança da Europa, apesar das diferenças
entre os países ex-comunistas e a Europa Ocidental e do Norte. Mas
erramos se pensarmos que a indiferença religiosa é apenas aquela que se
afirma como tal. Vivemos numa zona do globo de cultura religiosa
predominantemente cristã, mas onde a separação entre cultura religiosa e
prática religiosa é cada vez maior. Muitos dos que se afirmam católicos
podem até ser baptizados e ligados às suas tradições, mas estas são
vividas de forma cada vez mais secular.
Este fenómeno que, embora
de forma diferente, também se verifica no judaísmo, não tem paralelo na
religião muçulmana e evangélica: são religiões mais totalizantes no
primeiro caso, e militantes no segundo. Tal como a judaica, a religião
evangélica é pouco hierarquizada e muito descentralizada, o que facilita
o sentimento de relação pessoal e colectiva com o divino. Mas,
contrariamente ao judaísmo, é uma religião prosélita e carismática, em
que o papel do pastor ou do líder religioso é fundamental. Na religião
muçulmana, atrevo-me a dizer que há pouca separação entre cultura e
religião: um muçulmano é, acima de tudo, um praticante da sua religião.
Talvez estes factores contribuam para o crescimento destas duas
confissões, enquanto a hierarquização rígida e estratificada das
religiões demasiado institucionalizadas afasta os crentes.
A
imigração é outro factor a ter em conta quando cruzamos religião e
imigração: o número de muçulmanos cresceu muito com a vinda de
imigrantes de Moçambique e da Guiné, e o dos hindus com os imigrantes da
Índia. Da mesma forma, o crescimento dos cristãos ortodoxos também se
deve, em grande parte, à imigração ucraniana, assim como os brasileiros –
perto de 110 mil de respostas registadas – vieram reforçar os
evangélicos.
Nada disto se passa com o judaísmo. Os judeus não
são imigrantes. Foram-no de forma limitada no século XIX e início do
século XX, quando, depois de três séculos de banimento, aqui se puderam
voltar a instalar.
Foram novamente imigrantes e sobretudo refugiados do
anti-semitismo e do nazismo durante a primeira metade do século XX. Mas o
judaísmo não é uma religião prosélita e, para além de uns poucos que
vieram instalar-se no Portugal da União Europeia, a realidade judaica
actual é composta pelos descendentes desses imigrantes e refugiados, por
um lado, e por outro do remanescente das comunidades cripto-judaicas
que hoje voltam a assumir a sua identidade antiga. Apesar de parte
integrante da identidade portuguesa desde a constituição da
nacionalidade, é hoje uma realidade diminuta devido essencialmente às
vicissitudes da história e à sua própria maneira de estar no mundo: mais
do que um refúgio, o judaísmo é uma responsabilidade e um compromisso –
nem sempre muito fáceis, diga-se de passagem...
A democracia,
acompanhada pela liberdade de consciência, mudou Portugal. As pessoas
assumem sem medo a sua identidade religiosa diversa e os Censos são o
reflexo disso mesmo. Mas a história ensina-nos que nada é irreversível e
a liberdade religiosa, mais ainda do que qualquer outra, nunca é
definitiva. Sobretudo em tempos de crise…
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